Qual a razão da histeria pelo retorno das aulas presenciais em plena pandemia?
Rear view of little boy and his classmates raising arms to answer teacher's question during the lecture in the classroom.

Qual a razão da histeria pelo retorno das aulas presenciais em plena pandemia?

Artigo publicado na Tribunadaimprensalivre.com, por Wladmir Coelho

1 – A retomada das aulas presenciais em plena pandemia segue o clássico modelo das campanhas de interesse do capital amparadas em vasta publicidade disfarçada de artigos assinados por “técnicos”, que não revelam a serviço de qual técnica encontram-se. Reportagens pretensamente em defesa dos “mais necessitados”, sempre identificadas ideologicamente no discurso da incapacidade do Estado diante do dinamismo da iniciativa privada. Essas peças publicitárias apresentam acusações contundentes contra os profissionais da área, pautadas, via de regra, no discurso moralista contra o funcionalismo público, acusado de possuir, de forma indistinta, elevados salários e privilégios, postura acomodada em função da condição estável do cargo – ocupado por concurso público-, o que cria falsa associação entre o atraso nacional e a existência de um Estado minimamente – e reforço o minimamente – em condições de oferecer aos trabalhadores o acesso à educação, saúde, assistência social.

2 – Neste ponto precisamos esclarecer o seguinte: considerando o ano da independência política (1822) até a Revolução de 1930, o serviço público brasileiro foi caracterizado pelo apadrinhamento político como forma de ocupação dos diferentes cargos, geralmente, voltados às questões burocráticas, recolhimento de impostos, repressão e defesa. Vejamos, o Estado mínimo dos sonhos e práticas dos neoliberais existiram ao longo de 108 anos em nosso auriverde torrão e não possibilitaram qualquer alteração do modelo econômico dependente, de base colonial e agroexportador. Ao contrário, foi a forma encontrada para manter a dependência. As primeiras  alterações significativas da clássica subordinação ao imperialismo efetivam-se a partir de 1930, e apresentam em sua justificativa a seguinte observação aplicada naquele momento histórico: o Brasil, para superar o seu atraso, deve implantar um modelo produtivo de princípio capitalista com efetiva presença do Estado, indispensável para construir toda a estrutura para além do transporte, energia e comunicação, incluindo a chamada indústria de base responsável pelas condições de processamento da matéria prima, notadamente o minério de ferro, complementada, nos anos 1950, pela instituição do monopólio do petróleo exercido pela Petrobras, o que garantiu o controle nacional deste setor estratégico.

3 – Ao Estado brasileiro fica assim apontada a missão de planejar e executar – ainda que sem o uso efetivo das técnicas de planificação – atividades econômicas e empresariais complexas, impondo esta nova realidade a necessária criação dos instrumentos para a seleção de funcionários não mais relacionadas ao grau de parentesco com o chefete político e muito menos ainda subordinadas ao humor deste. O processo de modernização nacional efetiva-se a partir da criação de um corpo de funcionários públicos a trabalhar considerando um plano de superação do atraso, incluindo neste contexto a educação entendida como instrumento de intervenção econômica. Apresenta este modelo educacional falhas? Evidente, afinal não estamos tratando de uma visão ingênua da educação amparada na imparcialidade das ciências e sim de um projeto de superação do atraso em fundamentos capitalistas priorizando este a formação, para os filhos das classes trabalhadoras, voltada ao conhecimento mínimo necessário ao trabalho repetitivo, mecanicista, enquanto os jovens de classe média preparavam-se para o gerenciamento, ficando aqueles das classes dominantes em sua cômoda posição de controlar os meios de produção e, por isso mesmo, seguindo a prática de receberem formação em parte no Brasil em parte no exterior.

4 – A crítica ao modelo educacional será uma constante ao longo dos 1930 e anos seguintes àquela década e recebeu atenção de nomes como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Álvaro Viera Pinto, Florestan Fernandes, Paulo Freire, apresentando estes diferenças e convergências notadamente quanto à oferta da escola pública, laica, gratuita – aspectos iniciados, devemos observar, a partir de 1930 e ainda hoje vigentes. A educação, portanto, não constitui desta forma uma entidade mágica sem ligação com as necessidades e práticas da economia e da política, e apresenta, em sua estrutura de organização – aqui recordando Álvaro Vieira Pinto ainda nos anos 50 e 60 –, o formato determinado a partir dos interesses das classes dominantes e, por isso mesmo, elitista em sua concepção a transformar-se em popular quando responder aos interesses dos trabalhadores, que assumem a condição de elaboradores e executores das políticas para a sua organização, possibilitando assim entender a necessária ligação entre transformação política e educacional.

5 – A Constituição de 1988 apresentou avanços relativos à educação, elevada à condição de direito social e desta ao financiamento a partir da vinculação da arrecadação, com recursos reunidos no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB –  montante de  R$ 156,3 bilhões em 2019, prato suculento aos olhos dos banqueiros e fundos de investimentos acostumados a viver do suor alheio. Muitos professores ainda não perceberam, mas encontram-se no interior de uma disputa de grandes proporções muito além do prédio escolar, que envolvem interesses sediados em Wall Street.

6 – Esta disputa envolve as técnicas apresentadas no início deste texto reduzindo, em termos práticos, a função do professor a simples aplicador de processos educacionais mecanizados, elaborados a partir dos interesses empresariais a ponto de pouco ou nada interessar a posição e opinião dos profissionais da educação na elaboração das políticas do setor. Os representantes do capital, de forma sutil, assumem a representação da educação. Primeiro chegaram os economistas de mercado com seus múltiplos modelos de gráficos impondo um novo e “genial” formato para a organização da escola pública a partir dos fundamentos empresariais, ou seja, aplicou-se no setor público o princípio do maior lucro possível uma cópia dos modelos de administração das grandes corporações internacionais caracterizados pela incorporação, compra ou simples eliminação física da concorrência, aumentando o seu poder econômico em decorrência da concentração em direção ao monopólio.

7 – Depois chegaram os descolados de sapatênis e roupas transadas das organizações mantidas pelos bancos, fundações e institutos, com  discurso polvilhado de modernidades, adotando uma escola aqui outra acolá, pinçando “sucessos” individuais amplamente divulgados em seminários, encontros, filmes motivacionais, cursos mil, sempre pautados na impossibilidade pós-moderna de transformação social a partir das necessidades nacionais, de um projeto popular apresentando em seu lugar a individualização, a competição e desta a eliminação de seu igual como forma de sucesso. Este formato não é apresentado em sua forma fria, mas devidamente perfumado, asséptico embrulhado em papel colorido com fotografias comoventes, geralmente, denominado projeto de vida vendido a preço de ouro via programas de capacitação, formação e aplicação nas escolas públicas.

8 – Este modelo educacional recebeu em 2017 sua estrutura legal a partir da dita reforma do ensino médio que extinguiu, por exemplo, o ensino da História, reduzido ao quadro das ciências humanas para oferecer maior espaço aos interesses do mercado, na busca por vender cursos rápidos de profissionalização e ainda implantar de forma definitiva a crença na imutabilidade da sociedade. Restou aos jovens a simples adequação à forma, a saber, um mundo sem direitos trabalhistas, à saúde, à educação, no qual trabalha-se no período da manhã na escola aplicando as apostilas vendidas pelos banqueiros através de seus prepostos, à tarde na entrega sanduíches, a noite auxiliando os demais membros da família na costura de calças e nos finais de semana ainda encontra tempo para o empreendedorismo, vendendo panos de prato nos cruzamentos mais movimentados.

9 – Os muito ricos encontram na forma concentração o instrumento para reproduzir a sua riqueza e concentrar implica em necessária eliminação, inclusive física, de eventuais empresas concorrentes, encontrando esta prática a extinção dos médios e pequenos antigos fornecedores ou dependentes dos empregos e salários dos grandes eliminados seguindo a lógica empresarial de administração escolar. Estes mesmos princípios representam a campanha internacional para o  retorno das atividades presenciais, em plena pandemia e sem a expectativa de vacinação, a elevação do interesse pelo lucro acima do direito à vida, naturalmente acompanhado da adocicada fala de institutos, fundações e outros meios de representação do capital, apresentando-se em nome da defesa dos direitos e escudado por discursos pseudocientíficos.

10 – Exemplos para ilustrar a nefasta campanha não faltam no Brasil e no exterior e aponto aqui alguns, a iniciar pelo jornal tido por muitos, inclusive esquerdistas, como isento – entendido este termo como aquele que ouve os “dois lados” resultando este em incontestável verdade acima, portanto, das posições políticas de “direita” ou “esquerda”; refiro-me ao espanhol “El País” em sua edição do dia 2 de fevereiro na qual encontramos o seguinte título: “Escolas reabrem entre medo da covid-19 e do atraso no aprendizado.” Ao longo do material o jornal relata a abertura de escolas, a insegurança dos país, a posição contrária dos professores coroando a isenção jornalística com a posição científica de uma pediatra: “manter as escolas fechadas não está protegendo a maioria das crianças e ainda as expõe a uma série de outros riscos como desnutrição, violência e déficit de aprendizado.” Continuando sua caminhada no mundo da pedagogia e revelando vasto conhecimento do setor educacional, completa a ilustre doutora, que afirma ter estudado os famosos protocolos das redes estadual e municipal de São Paulo: “Pelo que a gente viu, tanto as escolas particulares como públicas fizeram adaptações importantes e estão se preparando para fazer uma volta às aulas segura”. E aprofunda a sua certeza científica: “As escolas que já reabriram ao redor do mundo não causaram uma explosão no número de casos, não foi constada essa relação de causa e efeito em lugar nenhum.”

11 – O jornal pouco se interessou em perguntar a douta representante da ciência quais escolas foram honradas a presença física “da gente”, quais adaptações importantes foram realizadas além da origem da afirmação que a reabertura de escolas “ao redor do mundo”. Confesso que o termo é dúbio podendo ser entendido como escolas na lua, sem a constatação de uma “explosão” dos casos ou inexistência de relação causa e efeito. O jornal simplesmente limitou-se a legitimar a campanha contra a vida utilizando um discurso pretensamente técnico e isento, todavia limitado quando se efetivam questionamentos mínimos a respeito da origem das afirmações.

12 – A campanha contra os professores, como afirmei anteriormente, não se encontra restrita ao Brasil. Organização internacional atua do mesmo modo, por exemplo, nos Estados Unidos, utilizando os grandes jornais as mesmas práticas ditas científicas acusando, inclusive, os professores de anti-intelectuais, negacionistas – um discurso para confundir, enganar. Vejamos o exemplo do The Washington Post que, em editorial informa: “Concluíram os cientistas do CDC escrevendo no JAMA,  Journal of the American Medical Association: ‘há poucas evidências de que as escolas tenham contribuído significativamente para o aumento da transmissão na comunidade’ ”. O editorial em questão quase oferece uma legitimidade “científica”  para a pediatra paulista, diferenciando-se no quantitativo. Enquanto o primeiro fica no “poucas evidências”, a segunda radicaliza ao afirmar não existir relação de causa e efeito “em lugar nenhum”. Contudo, o mais grave encontra-se na clara deturpação praticada pelo jornal estadunidense que utilizou parte da informação anunciada – aspecto a ser comprovado a partir da porta-voz da Casa Branca . Quando perguntada a respeito artigo do JAMA como garantia para o retorno das aulas presenciais, a porta-voz procurou responder, de modo a agradar o mercado, do desejo de mr. Biden em ver reabertas as escolas destacando, todavia, as limitações da pesquisa citada no Washington Post e outros veículos de comunicação, efetivada a partir de uma escola rural no Wisconsin indicando a autora da pesquisa preocupações com estabelecimentos localizados em grandes centros somados as diferenças de recursos entre as escolas destinadas aos filhos dos trabalhadores e aquelas frequentadas pelos ricos. Isso na maior economia do mundo – diferença solenemente ignorada pelo El País.

13 – Em artigo publicado em novembro de 2020 a revista Nature, para horror do científico El País e sua pediatra, publicou o resultado de uma pesquisa reforçando a necessidade de suspensão das atividades presenciais, concluindo o seguinte: “o fechamento de escolas nos Estados Unidos reduziu a incidência e mortalidade do COVID-19 em cerca de 60 por cento.”  Ainda “ao redor do mundo” temos a recente pesquisa da dra. Simona Bignami da Universidade de Montreal e dr. John F. Sandberg da Universidade George Washington revelando a infecção de crianças e jovens entre 10 e 19 anos como causa da contaminação de adultos entre 30 e 49 anos desmentindo a crença da reduzida capacidade transmissiva das crianças amplamente difundida nos meios dedicados a desinformação.

14 – A campanha irresponsável em defesa da retomada das aulas presenciais surge ainda como apelo a “saúde mental” dos estudantes, apontando inclusive um aumento nos casos de depressão atribuídos de forma genérica à falta das aulas na escola – ponto a ser estudado, inclusive após o eventual retorno, considerando o quadro extremamente complexo vivenciado pelos jovens brasileiros, como sabemos, a maior parcela de desempregados expostos a superexploração das entregas por aplicativo e outras formas de  subempregos, convivendo ainda com o desemprego dos pais e sem perceber o mínimo de possibilidades para superar as dificuldades, jogados daqui pra lá como simples objetos à disposição do capital, a receber em troca de suas angústias promessas vazias na forma de valorização do individualismo.

15 – As contraditórias informações “científicas” das classes dominantes para justificar a retomada das aulas presenciais em plena pandemia, divulgadas para confundir o trabalhador, apelam ainda para o quadro de limitações do acesso da maioria da população à internet ocultando, naturalmente, a necessidade da imediata democratização deste setor através da gratuidade do acesso e subsídio dos equipamentos necessários, acrescidos da utilização dos meios tradicionais como televisão e rádio para além da desfalcada rede pública – destruída em nome da concorrência que não há no setor de comunicação – recordando a condição de concessionárias de um bem público destas empresas utilizando, inclusive, o horário entre 7h e 21h, conforme determina o artigo 10 em seus parágrafos 3º e 4º da Lei 13415/17, a dita reforma do ensino médio: “§ 3º O Ministério da Educação poderá celebrar convênios com entidades representativas do setor de radiodifusão, que visem ao cumprimento do disposto no caput, para a divulgação gratuita dos programas e ações educacionais do Ministério da Educação, bem como à definição da forma de distribuição dos programas relativos à educação básica, profissional, tecnológica e superior e a outras matérias de interesse da educação. § 4º As inserções previstas no caput destinam-se exclusivamente à veiculação de mensagens do Ministério da Educação, com caráter de utilidade pública ou de divulgação de programas e ações educacionais.” No entanto, o Ministério da Educação, um dos últimos remanescentes do processo de modernização dos anos 1930, em momento algum apresentou esta possibilidade, preferindo omitir-se e pressionar pelo retorno das atividades presenciais, uma espécie de cloroquina educativa.

16 – O discurso negacionista, como é possível observar, apresenta-se associado aos interesses do capital e encontra formas sutis de apresentação; supera a forma simples e grosseira da oposição à vacina ou reconhecimento da existência da pandemia, ao apresentar uma condição pseudocientífica pronta para matar em nome do maior lucro possível.

 

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