Internet também é um espaço político em disputa

Internet também é um espaço político em disputa

Artigo de Florence Poznanski para Cartilha “Comunicação e Direitos Humanos” publicada pela Associação Henfil

No último segundo, enquanto você apenas começou a ler esse artigo, foram escritos 8174 tweets, 8500 comentarios do Facebook, realizadas 69 191 pesquisas no Google, 3333 chamadas no Skype, visualizados 75304 vídeos no Youtube e enviados 2 723 944 emails. Esse é o quadro da Internet hoje, que além de oferecer infinitas atividades cognitivas ao espírito humano, desdobra-se também em um inigualável potencial de acumulo de lucro e de poder.

Com tais proezas, Google totalizou em 2017 um faturamento de 110,9 bilhões de dollares, um crescimento de 23 % respeito à 2016. O equivalente do PIB do Koweit (120 Bi$) e mais que Equador (102), Ucraína (109) ou Luxemburgo (62) (dados FMI 2017), porém com uma taxa de crescimento que criaria inveja de qualquer país do planeta.

Por sua vez Amazon, a empresa de e-comércio e serviços online, alcançou no início de setembro de 2018, 1 trilhão em valor de mercado (valor somado de suas ações) tornando-se assim a segunda empresa na história a atingir esse marco. Segunda depoisda Apple, que ganhou o recorde um mês antes. Mais que qualquer empresa de petróleo, que até então lideravam a bolsa de valores.

Segundo a ONU, nas palavras de Frank La Rue, relator Especial da ONU sobre a promoção e a proteção da liberdade de opinião e expressão, a Internet é uma ferramenta indispensável para realizar uma série de direitos humanos, combate à desigualdade, e acelerar o desenvolvimento e o progresso humano. Mas hoje, só 55 % da população tem acesso à Internet no mundo e 84 % dos países não tem uma legislação adequada de proteção de dados pessoais.

Sendo assim, Internet não é só uma fantástica ferramenta para acessar ao conhecimento, se expressar, realizar atividades quotidianas de compras, lazer, gestão administrativa, também não é só um espaço de participação social e politica, de organização de redes, de geração de negócios e iniciativas inovadoras. Internet é sim, um espaço de poder em disputa.

Um espaço que abraça todas as políticas públicas reguladas ao nível dos Estados, um espaço principalmente controlado por multinacionais de telecomunicações e de tecnologias da informação (TIC), cujas estratégias de negócio afetam constantemente a vida da coletividade. Um espaço, portanto, onde essa coletividade não participa e sequer delibera. Melhor, um espaço praticamente anti-democrático. Um espaço de poder em constante expansão que se inclui em uma nova fase do capitalismo cuja característica é a transferência de competências historicamente assumidas pelos Estados para multinacionais de caráter privado agindo « em prol do interesse público ».

Isso se explica porque desde os primeiros passos da Internet, quando nos anos 90 iniciou-se sua comercialização, os processos de harmonização dos padrões técnicos, de seus protocolos lógicos e princípios normativos foram coordenados por setores técnicos, ligados à telecomunicação onde vigia a influência do setor privado e por consequência a falta de transparência, representação dos setores públicos e participação social1.

Isso permitiu a fulgurante expansão das chamadas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), « o novo G20 do mundo », em um vasto vácuo regulatório sobre o qual as instituições internacionais e Estatais estão procurando a duras custas recuperar quase duas décadas de atraso desde o início dos anos 20002.

Capitalismo de vigilância: o monitoramento como meio e fim da acumulação do capital

Esse crescente e sempre mais concentrado poder das multinacionais das TIC e seus impactos sobre os comportamentos das sociedades, vem sendo analisado por várias figuras estudiosas em torno dos conceitos de “sociedade de vigilância” ou “capitalismo de vigilância”. Segundo o sociólogo canadense David Murakami Wood “na sociedade de controle contemporânea, o monitoramento é empregado para facilitar o funcionamento do neoliberalismo e a naturalização do global e de sua própria escala de operação”.

No formato da sociedade disciplinar de Foucault o controle acontecia em espaços distintos em volta ao ato do trabalho: a fábrica, o escritório, a escola, o meio de transporte. Livrando-se da restrição espacial, a sociedade de vigilância generaliza o monitoramento em qualquer lugar e tempo, tornando o controle, um modelo de gestão do capitalismo, como lembra a pesquisadora Shoshana Zuboff. O monitoramento passa a ser parte do processo de acumulação do capital mediante a indústria da informação, de coleta e processamento de dados. Nessa lógica qualquer dado interessa, independentemente do sujeito, para alimentar os algoritmos e as máquinas de inteligência artificial que procuram modelizar o comportamento humano, lucrar em cima de uma divulgação publicitária sempre mais direcionada, e assim manter sempre vigente o controle.

Nesse cenário é possível fazer um paralelo com as noções marxistas do trabalho e da mais valia. Um trabalho que nos moldes globais da sociedade de vigilância, torna-se gratuito e não precisa mais de remuneração. Produzimos dados online a qualquer momento do dia para suprir todas as nossas necessidades. Portanto, o lucro produzido em cima da transformação da nossa matéria prima (os dados) a partir da nossa mão de obra (a disponibilização/extração de dados), não são redistribuídos para coletividade3. Nossas dados se tornaram o combustível necessário à acumulação de capital que se alimenta do processamento dessa matéria prima com fins de controle e manutenção do poder. A vigilância é ao mesmo tempo meio (coleta de dados) e fim (manutenção do poder).

A vulnerabilidade a esses processos é sempre mais obvia em países com regulação pública fraca. Ou melhor, os países com tradição de regulação pública mais fortes tendem a resistir um pouco mais a esse processo. Assim, o antropólogo brasileiro Rafael Evangelista afirma: “O Sul, com seus mercados precários e desregulados, com sua população ávida por sobrevivência e aceleração para o futuro, é laboratório e lugar propício para o capitalismo de vigilância4.

Segundo ele, mesmo tendo menor acesso à conexão Internet, a dependência às plataformas aumenta com o nível de precariedade do sujeito. A privacidade se torna um luxo. As desigualdades já presentes no mundo offline se reproduzem e se ampliam online. As diferencias entre ser online ou offline são sempre mais ínfimas, pois os comportamentos assimilados online permeiam afora. Desta forma, deixamos de ser cidadãos para ser usuários e deixamos de nos submeter à regulação das leis oriundas de um processo legislativo democrático por seguir orientações de algoritmos cujos códigos permanecem sigilosos.

Similar as lutas contra o agronegócio que afeta nossa alimentação, ou a extração de matérias primarias a origem da maioria dos bens que consumimos, a luta contra o poder das multinacionais das TIC sobre os rumos da Internet, torna-se, a uma escala hoje muito maior, um espaço onde é preciso urgentemente convencer a sociedade a se mobilizar em massa. Um campo político onde, por falta de regulação estatal, a cidadania pouco se acostumou a participar e é limitada a um papel de mero consumo, assegurando desta forma os interesses lucrativos dos que o controlam.

Que dia elegeremos o Presidente do Google?

Um dia, em um evento internacional sobre Internet, me arrisquei a fazer essa pergunta em público em frente a uma mesa de representantes de empresas de TIC. Quem me respondeu, alegou a importância do respeito à iniciativa privada e as consequências nefastas das nacionalizações de empresas sob o progresso da inovação.

Independentemente da nacionalização do Google ser ou não um cenário benéfico e plausível para o bem-estar mundial, essa pergunta apontava algo diferente. Se o modelo de negócio das chamadas GAFAM impacta tanto o funcionamento da sociedade mundial, seu comportamento, e até seus resultados eleitorais, a coletividade não pode deixar de participar de suas decisões o que implica a construção de um real espaço democrático em torno da chamada governança da Internet.

Quem defende hoje os direitos humanos, e entre eles especificamente o direito à comunicação ou seja “o direito à participação, em condições de igualdade formal e material, na esfera pública mediada pelas comunicações sociais e eletrônicas » (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO), precisa concentra-se sobre as políticas públicas em volta ao ambiente digital.

Desde 2014, com a aprovação do Marco Civil da Internet, o Brasil tornou-se um país pioneiro na compreensão da necessidade de legislar sobre Internet como um espaço de garantia de direitos. Recentemente, apesar de um contexto político extremamente conturbado, acabou de trava-se uma intensa luta no Congresso Nacional, onde conseguiu-se a maioria dos votos a favor de uma lei de proteção de dados pessoais que ainda faltava no país. O Brasil tornou-se assim o 127° país a ter uma legislação para regular a maneira que os dados dos cidadãos brasileiros são coletados, armazenados, processados e compartilhados5.

Apesar dessas notáveis conquistas, mais de 60 projetos de leis transitam hoje no Congresso para alterar o Marco Civil da Internet e uma boa parte com caráter punitivo. Talvez o leitor lembre os resultados da CPI dos crimes cibernéticos em 2016, que recomendou medidas de bloqueio e retirada de conteúdos com graves impactos na liberdade de expressão além de definir em alguns casos de crimes, como o de “invasão de dispositivos informático alheio”, penas de gravidade maiores a crimes já definidos (no mundo “offline”) no código penal.

Esse preocupante fenômeno mostra o nível de despreparo dos legisladores e muitas das vezes também dos poderes públicos, sobre o tema da Internet, que sem conhecimento de seus princípios, impactos e funcionamento continuam vulneráveis à pressão dos lobbys e acabam recorrer à abordagem punitiva em vez de assegurar antes de tudo a preservação dos direitos. Vale também lembrar que o texto do Marco Civil da Internet, reconhecido hoje com um dos mais avançados do mundo, é o fruto de um amplo processo de participação cidadã que durou sete anos e iniciou-se como uma alternativa a outro projeto de lei chamadoAI-5 da Internet” ou lei Azeredo que se concentrava em punição de crimes digitais. Prova da importância da participação social.

Atualmente, muitos outros debates estão acontecendo no Brasil como o assim chamado combate às fake-news”, assuntos ligados às “cidades inteligentes e conectadas” ou ainda o Plano Internet para Todos de ampliação do acesso no Brasil.

Mas as lutas pelos direitos digitais não conhecem fronteiras nacionais. Questões como a responsabilidade sociais dos algoritmos que inserem-se sempre mais na esfera pública, tornaram-se hoje temas cruciais. Qual nível de transparência sobre um algoritmo, uma propriedade intelectual privada, os poderes públicos podem exigir a partir do momento em que seus vieses podem causar efeitos sociais antidemocráticos e injustos6?

Nos Estados Unidos, a decisão da agência reguladora de comunicação (FCC) de acabar com a neutralidade da rede terá impactos mundiais sobre o tráfego de dados, permitindo agora que alguns tipos de serviços sejam accessíveis mais rapidamente que outros e com tarifas diferenciadas.

Universalização do acesso, privacidade, neutralidade, liberdade de expressão, direitos humanos, taxação dos lucros da indústria da comunicação, esse são alguns dos desdobramentos da agenda pública mundial da Internet que precisa se defendida. Está na hora de nos reapropriar a Internet e construir o modelo democrático e emancipador que o povo precisa.

Bibliografia :

MURAKAMI WOOD, David. (2013). What is global surveillance? Towards a relational political economy of the global surveillant assemblage. Geoforum. 49. 317-326. 10.1016/j.geoforum.2013.07.001. 

OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO. Direito à Comunicação. Disponível em <http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?page_id=28545> Acesso em: 13 ago. 2018.

ZUBOFF, S. J. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. In: Journal of Information Technology , Volume 30, Issue 1, 2015, p 75–89. Disponivel em <https://doi.org/10.1057/jit.2015.5>. Acesso em: 13 ago. 2018.

1Quem se interessar em aprofundar sobre esses espaços pode consultar o funcionamento de algumas das principais instâncias internacionais de regulação da Internet como a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), ITU (International telcomunication Union) ou IETE (Institution of Electronics and Telecommunication Engineers).

2 As reflexões em torno da necessidade de uma governança mundial da Internet começou a partir dos anos 2000 como o World Summit of the Information Society (2005) e a criação do Fórum da Governança da Internet (IGF) ligado ao sistema das Nações Unidas que se reuni anualmente desde 2006 mas sem função deliberativa.

3 A fraqueza do arcabouço legal de taxação dos lucros das multinacionais torna essa redistribuição ainda mais pifia que outros serviços. Enquanto o imposto sobre circulação de mercadoria e serviço (ICMS) no Brasil pode chegar a 20% sobre determinados produtos de venda de bens no Brasil, a empresa Apple negociou uma taxação de 0,005% com a Irlanda onde ela tem sede, sobre todos suas receitas na Europa.

4 Como também foi o ajuste fiscal já foi nos anos 1990 apos o consenso de Whashinghton.

5, Infelizmente a potência da lei foi reduzida por vários vetos presidenciais que revogaram a criação de uma autoridade independente que teria o papel de cumprir essa regulação.

6https://www.bbc.com/mundo/noticias-39883234 vejam casos de algoritmo utilizado pelo poder judiciario para assessorar o juiz na definição das penas, com comprovados vieis racisitas.

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