Direitos digitais são direitos reais

Direitos digitais são direitos reais

Por Florence Poznanski e Raquel Baster

O que as lutas por direito à moradia, a terra, à educação, pelo trabalho digno, pelo direito das mulheres, das pessoas LGBT e da população negra têm em comum? A necessária luta pelos direitos digitais. Em breve iremos lançar o vídeo “Direito digitais são direitos reais”, resultado de uma formação realizada em novembro de 2019 pela Internet Sem Fronteiras e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação. O objetivo foi capacitar à defesa dos direitos digitais um grupo de 24 mulheres de 22 organizações da sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais de Belo Horizonte-MG.

Mais um projeto de formação? Não. Depois de termos promovido inúmeros cursos sobre o tema, entendemos que por mais que o conteúdo de uma formação seja muito interessante, seu maior desafio não é apresentar teorias, pesquisas e dados ou de cativar as participantes, mas principalmente de assegurar que a capacitação possibilite avanços concretos para atuação na sua própria realidade. Sabemos que no atual contexto de retirada de direitos sociais e escassez de recursos, as organizações tendem a priorizar sobre o coração de suas ações e não de aprofundar sobre temas que podem parecer “de segundo plano”. Nisso caem quase sempre os direitos digitais considerados como direitos “não vitais”. Para quem luta por moradia, por terra ou por trabalho, os direitos que garantem liberdade de expressão, proteção dos dados pessoais ou o acesso à internet podem parecer bem longe na escala das preocupações.

Parece que a vida online não se diferencia mais da vida fora da rede. A pandemia da Covid-19, na qual estamos passando hoje, escancara essa realidade online desigual e cada vez menos distante da vida fora dela. Quem só acessa Internet via celular com franquia de dados reduzida sabe da importância de ter acesso à Internet. Seja para realizar teletrabalho, acompanhar as aulas de Educação à Distância, quanto de alcançar benefícios sociais. E para quem defende direito das mulheres, indígenas, dos negros ou das pessoas LGBT, a denúncia dos ataques de ódio na rede virou uma prática cotidiana. É preciso se preparar e proteger nas redes.

Esse foi o desafio que nos foi posto e ao qual tentamos corresponder com uma metodologia participativa. O resultado desta formação foi comprovar o quanto os direitos digitais estão ligados aos demais direitos sociais que as organizações defendem.

E como os direitos digitais fortalecem a luta pelos demais direitos sociais?

O fio condutor da formação foi detalhar o que são os direitos digitais a partir de cinco principais

  • acesso à internet (custo e neutralidade);

  • privacidade (proteção de dados pessoais e vigilância);

  • liberdade de expressão, pluralidade e diversidade;

  • participação social e apropriação tecnológica;

  • transparência e acesso à informação.

Dividimos as participantes em grupos temáticos por afinidades de luta e as convidamos a se perguntar sobre cada um desses direitos, para avaliar se quais estavam sendo garantidos ou violados. O resultado foi a elaboração de um mapa dos direitos digitais:

Mapa dos direitos digitais

Sem surpresa o acesso à Internet estava sendo amplamente violado para todas as pessoas em vulnerabilidade social obrigadas a contingenciar seus dados, como por exemplo, a população em situação de rua e moradores em ocupações urbanas. Além disso, a violação desse direito fundamental se desdobra em outras violações como à educação, ao emprego, ao auxílio social e à informação. O Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) dispõe sobre Direito de Acesso à Internet como um direito de todos e essencial ao exercício da cidadania.

De todos os aspectos dos direitos digitais, a privacidade é, sem dúvida, o direito digital mais subestimado. Quem nunca falou “não tenho nada a esconder”? Foi quando apareceu o relato de uma organização que por causa de senhas pouco seguras, viu hackeado todo o seu acervo de trabalho e sistema operacional interno, desta forma o assunto passou a se tornar bem mais concreto. Isso pode parecer um caso isolado, mas tem se multiplicado nos últimos anos. O roubo de dados é traiçoeiro, por exemplo, quando um aplicativo útil como os de controle da gravidez ou de performance sexual, nos parece inofensivo, mas descobrimos que nossos dados não são protegidos e são vendidos para a indústria que produz pílulas anticoncepcionais. A Lei de Proteção Geral de Dados – LPGD (nº 13.709) disciplina como empresas e entes públicos podem coletar e tratar informações de pessoas, estabelecendo direitos, exigências e procedimentos nesses tipos de atividades. A LPGD estava para entrar em vigor este ano, mas foi adiada no mês passado pelo Senado brasileiro. No campo da privacidade como no campo do acesso, a grande maioria dos direitos das militantes das organizações sociais está continuamente sendo ameaçados e violados.

Já surgem luzes de esperança quando se fala de liberdade de expressão. As redes sociais têm trazido uma redução do custo da comunicação, sem uma exigência de investimentos em agência de publicidade e diversificação dos conteúdos. Mas os estudos mostram que a concentração dos monopólios continua e se expande. E quem sofre dessa discrepância? Os mesmos que esperavam se beneficiar dessa nova abertura. Pois bem, muitas lideranças das entidades, sindicatos e movimentos sociais têm hoje seu blog, sua página para se comunicar, mas qual a divulgação delas? Além de limitar a disseminação de alguns conteúdos informativos, os algoritmos das grandes plataformas ao contrário, permitem a viralização de mensagens de ódio que atingem principalmente mulheres, negros, pessoas LBGT, indígenas, etc. Essa violência online se repercute inevitavelmente na vida real da pessoa atingida e de suas organizações. O artigo 5º da Constituição Brasileira prescreve a liberdade de expressão como direito fundamental a democracia.

Quando se fala de direitos digitais, precisa também garantir que o direito à informação e à cidadania continuem sendo garantidos no mundo virtual. E por isso que a questão da transparência e da participação digital é tão importante. Mais informação circulando deveria abrir a possibilidade de divulgar mais dados sobre o funcionamento de governos, das instituições e estatísticas sobre a sociedade. Internet deveria também oferecer mais ferramentas para organizar as pessoas, lançar iniciativas cidadãs, cobrar mais nossos representantes. Isso tem acontecido em parte, mas não sempre. Até porque para desfrutar plenamente do seu direito à transparência e à participação online, é preciso garantir previamente o acesso, a privacidade e a liberdade de expressão. A Internet permitiu a criação de grupos solidários, a viralização de vídeo gravado por midialivristas sobre ataque de policiais em manifestações, mas ainda falta transparência sobre decisões estratégicas como a formulação dos algoritmos das plataformas ou a implementação de uma verdadeira política pública de acesso à informação.

Lutar pelo direito de todas e todos é defender o respeito também na rede. Lutar por direitos digitais significa também avançar na conquista de todos os direitos fundamentais que exigimos. Direitos digitais são direitos reais.

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