Existe democracia quando se trata do acesso à informação no Brasil? Entrevista com Florence Poznanski, presidenta e fundadora da ISF-B

Existe democracia quando se trata do acesso à informação no Brasil? Entrevista com Florence Poznanski, presidenta e fundadora da ISF-B

Compartilhamos aqui entrevista realizada pelas estudantes de jornalismo na PUC-Minas, Bia Fonte e Raquel Molica que fizeram contato com a ONG para realizar um trabalho universitario.

Em 2023, um estudo identificou que no Brasil existem cerca de 14.444 veículos de notícias em funcionamento. Apesar do alto número, existe ainda uma preocupação em relação ao acesso a essa informação, e na forma como ela é interpretada por cada brasileiro.

A cientista política francesa Florence Poznanski dedicou anos de estudo e trabalho no Brasil para entender a relação entre a maneira como a informação é produzida e distribuída no país. Poznanski nasceu e cresceu na França, onde se formou em engenharia civil. Ao fim de sua graduação, ela teve a oportunidade de realizar um estágio no Recife e passou a ter contato com questões de orçamento participativo. Nessa experiência, Poznanski entendeu a necessidade do público participar de decisões governamentais, e iniciou sua segunda graduação, em ciências políticas.
Entre as reviravoltas dessa história, a passagem da francesa no nordeste brasileiro resultou na paixão por um mineiro, trazendo a cientista para Belo Horizonte. Foi então que ela passou a cursar o mestrado pela UFMG e a conhecer a realidade do acesso à informação no Brasil. Poznanski afirma que a partir daí percebeu a importância da comunicação. “Era extremamente importante que a população participasse das decisões do governo, mas para isso, era necessário cuidar da formação de opinião das pessoas” , afirma.
Na busca por essa democratização da comunicação e na formação de opinião da população, Poznanski criou a ONG Internet Sem Fronteiras que desenvolve projetos de letramento digital, com o intuito de capacitar a relação da população com a informação e a internet. Além disso, a cientista também foi secretária geral do comitê mineiro do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC).
A seguir, Florence Poznanski fala sobre sua experiência na comunicação no Brasil e analisa o cenário atual.

Você teve formação em Ciência Política. O que despertou seu interesse pelo campo da comunicação?

Eu terminei meu mestrado sobre o orçamento participativo e, só então, eu entendi que a formação técnica não era suficiente. Foi quando eu parti para a formação de política sobre o orçamento participativo e compreendi a importância do cuidado com a opinião das pessoas. Depois eu vi que tinha que me preocupar com a questão de comunicação, mas eu não tinha formação nessa área. Meu pai era jornalista, mas acho que eu nunca tinha pensado ou queria ser jornalista (risos).

A partir daí, o meu foco foi a crítica da mídia. Tentando garantir que as pessoas, quando elas fossem participar no orçamento da cidade, votar ou se expressassem de algum modo, que elas tivessem uma informação que as permitisse entender os verdadeiros problemas daquele local. Começou então esse projeto que deu início a criação da ONG internet em fronteiras do Brasil.

A democratização da comunicação também é um problema na França? Se sim, de que maneiras ele é diferente do que no Brasil

Existe essa percepção de que na Europa as coisas são mais avançadas e no sul mais atrasadas. Mas, ao longo dos dez últimos anos, eu entendi que não é bem assim.

A França tinha uma cultura de ter um serviço público de mídia muito forte. Mas isso, ao longo do tempo, foi se invertendo. Primeiro que a gente vê um grande enfraquecimento na audiência do canal público. Ele continua mais forte que no Brasil, mas existe um controle maior e um enfraquecimento da sua audiência, além de aumento muito forte do poder privado/particular no controle da mídia. Seja ele pela imprensa, rádio, TV.

A diferença é que no Brasil sempre foi assim, com famílias oriundas da ditadura, famílias tradicionais que controlavam essa mídia. É uma mídia pública fraca, praticamente inexistente. Na França essa tendência de poder da mídia particular vem aumentando. Mas não controladas por famílias, são grupos industriais que não tem nada a ver com a mídia, por exemplo empresa de armamento, empresa de construção. Apesar disso, a grande tendência mundial são as redes sociais, que afetam os países de maneira igual. Começa aí a construção da opinião pública e acaba ficando mais ou menos a mesma coisa.

Como começou sua história com o Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação?

Foi em 2012 que comecei a criação da ONG Internet Sem Fronteiras em BH. Com ele, eu já desenvolvia muitos projetos no âmbito escolar e, então, descobri o FNDC, as pessoas atuando nele e comecei a acompanhar.

O Fórum permite que as ONGs sejam membros, ele é composto por centenas de organizações, de associações e movimentos sociais. Assim a Internet Sem Fronteiras se tornou membro do comitê mineiro. Eu admirava muito esse trabalho e entendia que essa luta era complementar aos pequenos projetos que eu fazia. Em 2015 houve uma renovação da direção, e eu fui convidada a assumir o papel da Secretaria Geral, em um mandato de 4 anos.

Você esteve atuando na democratização da comunicação no Brasil durante o início do governo de Temer e Bolsonaro, tempos difíceis para a imprensa no Brasil. Quais foram os principais desafios que isso te trouxe?

Eu peguei isso tudo, né? Entrei na diretoria em 2015 e foi muita luta. Eu lembro de várias coisas. Primeiro foi o entendimento de que os governos Lula e Dilma nunca tinham levado a sério o papel da democratização da comunicação, e o papel da mídia no golpe foi central. Isso foi muito doloroso para a gente, dizer “nós avisamos”. Infelizmente era assim ainda, na época o Lula falava que a regulação da mídia podia ser feita “mudando o canal na TV”.

Eu lembro quando a Dilma em 2016 veio para BH para um evento de mídia alternativa e fez o primeiro discurso em que ela assumia a democratização da mídia como pauta. A gente ficou muito satisfeito, mas também muito chateado, porque poderia ter mudado o cenário se isso tivesse sido feito antes.

Depois houve todo o processo do golpe, o impeachment, o Temer e a desconstrução progressiva da democratização da mídia. Uma das primeiras coisas que o governo Temer fez foi cancelar o conselho curador da EBC [Empresa Brasileira de Comunicação]. Essa instância era uma das poucas em que havia participação social para orientar a governança da EBC. A gente denunciou isso.

Quando começou o governo Bolsonaro, mudou muito a nossa pauta. Antes era uma defesa da mídia pública, uma luta contra os monopólios. Então percebemos que muitos jornalistas independentes e ativistas da mídia começaram a ser agredidos, ameaçados. Aí entramos em uma campanha nacional que foi “Calar Jamais”, em que começamos a levantar todos os casos de jornalistas que estavam sendo agredidos, sofrendo ameaças no seu trabalho para sua vida.

O que seriam exatamente esses conselhos curadores?

A EBC, por ser uma instância pública, tinha o conselho curador, com representantes do governo, das empresas e da sociedade civil. Eram uma diversidade de setores da sociedade civil, com representantes da juventude, das mulheres. O intuito desse conselho era justamente garantir essa diversidade dos pontos de vista nas pautas da EBC. Ele é uma forma de garantir uma independência em relação ao governo, ao poder privado, para poder representar todos e todas.

E quanto ao governo de Minas Gerais? Qual era a postura do executivo estadual em relação à democratização?

Em Minas, quem estava segurando a gente era o Pimentel, com um governo mais progressista, em que a gente estava tentando construir, inclusive fortalecer os espaços de participação social na comunicação pública. Tinha a Rádio Inconfidência e a Rede Minas e a gente estava com planos para criar um conselho curador também da Rede Minas, junto com a EMC [Empresa Mineira de Comunicação]. A gente tinha esse diálogo, e até conseguimos que esse conselho curador tivesse um representante da sociedade civil. Aí quando foi o governo do Zema em 2018 isso tudo começou a se desestruturar, e a gente sentiu isso na pele.

Quais os principais trabalhos você realizava no Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação?

Em Minas, justamente por ter duas mídias públicas presentes e por ter ainda um governo progressista, nossa pauta era garantir um fortalecimento do caráter público desses setores. Ali a gente justamente tentou andar com o trabalho da criação também do conselho curador na EMC. Conseguimos uma reunião com o governador, fizemos a construção de uma lei, então encontrávamos muito com deputados. A gente organizava audiências públicas na Câmara. Era um trabalho de incidência, para conseguir aquilo que a gente queria. Estávamos presentes em todos os atos de defesa à liberdade de expressão. Falávamos sempre sobre o papel da mídia no processo, eu mesma já subi em caminhão de som, falei no meio da rua, do povo.

A gente também organizava encontros com movimentos sociais, porque a grande dificuldade era que esse papel da democratização da comunicação nunca foi um tema priorizado. A gente tinha esse papel de convencer, então a gente ia lá, encontrava sindicatos, organizava cursos de formação de comunicadores populares. Teve um projeto super legal em parceria com o governo de Minas, que financiou um curso de uma semana para mais de 60 comunicadores populares do estado.

Quais propostas do FNDC para Minas Gerais foram alcançadas em seu mandato?

A criação desse conselho curador da EMC foi implementada, também com a nossa proposta de ter pelo menos um representante da sociedade civil. Depois eles tiraram o poder desse conselho, mas durante esse tempo a gente conseguiu a aprovação desse processo. Esse curso também, que foi bancado pelo governo de Minas teve muito impacto, e realmente ajudou várias pessoas a entender a comunicação democrática. Essas foram as duas principais coisas que conseguimos realizar.

Qual foi a motivação para trazer a ONG Internet sem fronteiras para o Brasil?

Eu estava com esse projeto na cabeça, e aí eu encontrei esse pessoal da ONG Internet Sem Fronteiras na França, que é uma ONG internacional. Eles gostaram do meu projeto e me perguntaram se eu gostaria de pegar a marca no Brasil, sem dinheiro, sem nada, e criar uma sede da ONG aí (risos) e eu falei que sim! Mesmo sem muito entendimento, comecei a construir. A ONG é internacional, mas no Brasil nós temos uma independência. Os projetos focaram muito na questão da comunicação na mídia, a educomunicação. Trabalhamos com alunos, tinham oficinas o ano inteiro voltadas para críticas da mídia, inclusive muitos estudantes de jornalismo. A gente fazia produções em vídeo, algumas coberturas midiáticas em eventos, para eles praticarem. Depois começou o projeto também com professores, para que eles tenham possibilidade de tratar esse assunto dentro da sala de aula. Tivemos uma parceria com a rádio UFMG educativa, em que temos um programa sobre a comunicação democrática. E aí depois começou também um aspecto mais ligado à cultura digital, né? A defesa dos direitos tal como direito humano.

Quanto ao trabalho da ONG com a produção independente dentro do jornalismo, qual você acredita ser o papel do jornalista independente dentro de uma democracia?

O papel do jornalista para mim é o papel de poder trazer ao conhecimento do povo as informações que a tendência é escondê-las. Então o mais difícil e o mais importante, é justamente buscar revelar o que por alguma razões de poder que seja poder econômico ou qualquer outro poder estão sempre escondidos. E garantir que essa informação possa produzir uma consciência, uma tomada de entendimento para quem está lendo. E aí vem a importância do independente, porque a gente sabe que a grande maioria dos meios de comunicação tem uma linha editorial sempre censurada ou controlada. Isso inclusive é o que coloca em risco a vida dos jornalistas. Eles sempre vão trabalhar com informações, alguns poderosos não querem isso.

Você pensa que a dependência do consumidor de notícias no Brasil aos grandes monopólios de mídias é negativa para a democratização da informação? As redes sociais são uma escapatória para isso?

Sim, sempre. E eu não acho que as redes sociais tem ajudado muito, porque os algoritmos, têm limitado ainda mais a possibilidade de acesso à informação. Tem as fake news, as “meio fake news” que são piores, pois não são tão exageradas para parecer falsas, mas dão uma informação falsa. Esse é um grande problema, produzido pela ilusão de que as pessoas podem se tornar atuantes, produzir conteúdo, mas um conteúdo com pouca qualidade, sem nenhum impacto. A alternativa é sempre esse papel de regulação. Quando eu estava no FNDC a gente discutia muito sobre regulamentação da mídia, sobre garantir um controle democrático das informações.

Houve algum momento em sua atuação pela democratização da comunicação no Brasil em que você sentiu sua segurança ameaçada?

Não tive ameaças diretas, mas sempre fiquei com receio na hora dos atos, sempre achava que nessas horas alguma coisa podia acontecer. Inclusive foi uma das razões para eu não pegar a cidadania brasileira, pois o fato de ter a cidadania francesa podia me proteger um pouco mais.

Seu retorno para a França deu-se em um momento marcante de muitos desafios para a comunicação, especialmente em relação a negacionismo e ataques à mídia, você acredita que ao olhar para o país hoje, mesmo de fora, sua percepção é de melhora nesses aspectos?

Uma coisa legal que aconteceu foi a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que chega para ajudar e também controlar de certa forma o uso de dados de usuários. E ainda estamos esperando as reformas do governo Lula.

Também vejo que a polarização no país colaborou para que grupos, como a Rede Globo, vissem seus monopólios enfraquecidos e encontrassem a necessidade de reposicionar suas linhas editoriais para manter sua relevância. São mudanças feitas por interesse comercial, mas mostram que mudar é possível de acordo com a correlação de forças.

Não é uma vitória. Mas são observações de mudanças.

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